Dúvida
Aconteceu um pouco antes das sete da noite, quando senti um vento fraco cortando os meus pensamentos. O cansaço bateu forte durante o retorno de uma curta viagem que fiz para a casa da avó da D’Alma, hoje, minha ex-namorada. O vidro da porta do passageiro estava entreaberto, uma pequena fresta causava um ruído inconstante como um soluço em que normalmente já não se tem nenhum controle, sem ritmo, sem uma causa aparente, por cima de um silêncio inoportuno que me fez dispersar para coisas distantes daquele domingo chuvoso, numa estrada escura e quase sempre um tanto quanto perigosa, a visão fúnebre de um quase silêncio. Apesar de dirigir com cautela, tive que ouvir por várias vezes a D’Alma reclamando com um cuidado excessivo para com a velocidade desenvolvida pelo carro, era fato que às vezes seguia de maneira exagerada, ou melhor, velocidade desenvolvida por mim, por minha animosidade misturada com certa ansiosidade. Sonolento por ter começado a dirigir mais lentamente, comecei a pensar na vida de maneira automática, fiquei desligado de tudo, quase sempre do mesmo jeito, como acontece comigo diante da monotonia que faz parte da vida. Talvez por desejar chegar logo, talvez por ouvir reclamações insipientes, eu fiquei ainda mais sonolento e sem perceber, fiquei desatento. Desejando não perceber mais nada à minha volta, pois sempre foi muito fácil não reconhecer a estranheza dos meus próprios pensamentos, eu apenas dirigia seguindo adiante num transe sorumbático. Nós saímos juntos do interior de São Paulo, tudo aconteceu muito às pressas quanto à viagem, tanto para ir até uma cidadezinha de um pouco mais de 120 km de São Paulo, quanto para voltar a São Paulo, a avó da D’Alma estava desenganada pelos médicos e isso foi o suficiente para que ficássemos todos meio atordoados. Na volta, resolvi dar uma parada no ateliê de um amigo, onde costumo fazer um trabalho de colaborador não-remunerado. Passei para pegar algo que não me lembro agora o que era, nem os motivos de ter que fazê-lo, mas isso não tem importância agora. Somente depois de entrarmos na cidade é que fui avisar a D’Alma de que iria passar no ateliê. Óbvio que deixei para avisá-la em cima da hora, porque sabia que ela certamente iria me censurar, como sempre fazia com relação ao assunto; por achar perigoso e desnecessário, por achar inoportuno e sem sentido e outras coisas mais. Porém, independentemente disso, nós mal estávamos a caminho do ateliê e ela já havia começado a reclamar de alguma coisa sobre o assunto do trabalho não-remunerado. Por eu não ter com esse meu amigo do ateliê, nenhum vínculo financeiro ou trabalhista, por eu ter sido sempre apenas um colaborador na maioria das vezes sem nenhuma remuneração, justamente por tudo isso e mais um pouco é que a D’Alma ficava irritada. Toda vez que eu mencionava algo sobre o lugar ela retornava ao assunto com alguma coisa a mais a acrescentar. Me lembro bem, eu estava preocupado com uma viagem a trabalho que eu teria que fazer. A viagem estava marcada para a manhã do dia seguinte, logo ao amanhecer, por isso eu pensava em desistir de dormir na casa da D’Alma que ficava mais distante do aeroporto em comparação a minha casa, mas mantive a ideia. Por isso ela ainda estava comigo, caso contrário meu caminho teria sido outro. Mesmo com a presença da D’Alma, eu continuei insistindo que deveríamos retirar minhas coisas do ateliê. Eu iria ficar mais de uma semana fora da cidade e não estava me sentindo confortável em deixar tanta coisa minha a atrapalhar o espaço alheio que já era tão pequeno: uma simples sala de vinte metros quadrados, sem banheiro, com uma única janela para os fundos do prédio, sem muita ventilação e quase nenhuma segurança. A janela não possuía fechadura e deixar alguma coisa de valor no ateliê seria o mesmo que dar sopa ao azar. A D’Alma parecia pressentir que algo de ruim estava por acontecer, mas como eu poderia saber? Ela estava sempre pressentindo coisas que nunca aconteciam! As mulheres são sensitivas nesse ponto, eu sei! Até hoje ainda penso mais ou menos assim! Quero dizer… sei lá?! As mulheres são muito mais ligadas aos acontecimentos da natureza humana do que nós homens, isso eu tenho certeza! De vez em quando tudo bem, mas quem fica pensando nisso o tempo todo? O que fazer com isso? Mas as mulheres também erram, às vezes tanto quanto acertam! O duro é que… quando acertam… Um dia eu até acreditei com mais fervor em muitas coisas que hoje penso não fazer o menor sentindo, e que as mulheres possuem mesmo certa divindade, mas hoje…? Não sei! Eu duvido da humanidade como um todo, principalmente por nossa real necessidade de ter que acreditar em alguma coisa… isso acaba por comprometer quase que todo pensamento humano! Não falo dos grandes gênios, falo das pessoas comuns! O certo é que não penso mais assim, não exatamente assim! Se existe para mim um verbo que não faz mais sentido nesse mundo, é o verbo ‘acreditar’, também vou incluir o ‘possuir’. Possuir alguma coisa? (risos). Nada! Aqui, ninguém possui nada! A não ser uma simples ideia, uma sensação de posse! Possuímos apenas o dom da imaginação de que possuímos alguma coisa! Mas duvidar! Esse sim é o verbo que mais faz sentido para mim, pois eu duvido de tudo! Duvido que o homem seja um ser assim… tão evoluído como muitos desejam e acreditam! às vezes eu penso que não passamos de ‘pedras’ ambulantes com pernas e bocas…
Continua…