A Família –
“Sua esposa faleceu!”
Uma voz desconhecida informou pelo telefone. Clemente ouviu essa frase em total estado de reclusão, indiferente aos próprios sentimentos.
“Silêncio!”, disse o homem do outro lado da linha, quase aos gritos, tentando parecer educado, com um sussurro áspero e contraditório de quem tenta fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Disse assim, dirigindo-se para alguém em sua sala, para algumas que estão a conversar entre risos histéricos. Clemente mal pôde compreender o que está acontecendo. Ao tapar o telefone com a mão, o homem se controlou para não ter que gritar, aglutinou a voz na expectativa de não ser ouvido por Clemente que não está prestando a devida atenção. Desconcertado com a situação, o homem sequer conseguiu se desculpar, apenas repetiu o que já havia dito.
“Senhor… sua esposa faleceu!”, a frase em tom cambaleante, como que surge de uma situação sem sentido, como se fosse possível agora haver pesadelos eletrônicos, uma frase assim, repleta de sentidos dissonantes, após um breve instante de silêncio, a linha cai.
Há poucos instantes Clemente dormia acordado enquanto caminhava sem rumo aparente, sentiu-se como se tivesse acabado de despertar de um pesadelo estranho, de um sonho diferente do que considera ser o normal de um sonho qualquer.
“Sua esposa faleceu!”, pensou ao perceber que ouviu a frase antes mesmo de o telefone tocar. A frase havia reverberado no pensamento de Clemente por intermédio de uma voz distante, desconhecida e persistente, como uma lembrança submersa de um pesadelo que ocorreu na noite a antecipar o inevitável; de que sua esposa é uma paciente em estado terminal. E que a imaginação também trabalha com elementos da realidade.
“De tanto pensar nisso, uma hora acabo acertando! Será que é assim que acontece com quem acredita e persiste com suas crendices?! Eh! É isso! Sem perceber, de tanto pensar em determinado assunto, uma hora a pessoa acaba mesmo acertando! Depois, sai dizendo por aí que foi uma premonição. Pura besteira! Tudo não passa de energia circulando; como se uma imagem, ou melhor, a energia da própria imagem pudesse se antecipar ao fato e chegar antes da própria ideia… antes mesmo da materialização. Nada mais! Assim, simples! Porque a pessoa acaba se conectando a uma determinada ideia… e a coisa toda acaba por acontecer. Principalmente em um caso como esse… como o de Ângela; é muito certa a probabilidade de que em breve… isso se concretize… em virtude do seu estado de saúde. As chances de eu receber uma ligação com alguém me dizendo o óbvio…!”
“Assim… droga! Uma hora dessas… eu acabo mesmo acertando! Ehhh! É isso mesmo! Foi o que eu havia pensado! Agora…”
Clemente permaneceu caminhando em silêncio, mergulhado em seus pensamentos, até que tudo voltou a acontecer.
“Sua esposa faleceu!”, desta vez Clemente até imaginou o rosto de uma pessoa jovem, com uma voz um pouco esganiçada, porém, contraditoriamente serena e tranquila, uma pessoa desconhecida e distante.
“Uma pessoa cuja profissão é a de informar, sem rodeios, sobre a morte, por muitas e muitas vezes seguidas, por vários dias e meses de sua vida, com essas mesmas palavras secas, com as quais acabo de imaginar. ‘Sua esposa faleceu!’. A de permanecer na indiferença das horas!”
“A loucura está apenas em acreditar por acreditar, em acreditar nos achismos! Em acreditar nas aparências das coisas do mundo!”
“Duvido sempre de qualquer coisa da qual eu necessite acreditar!”, nesse momento, Clemente começou a rir de si mesmo e ainda pôde se perceber assim, avoado, distante. “A boa loucura é essa… a de rir de si mesmo!”
Cada vez mais distraído, Clemente continua despretensioso em sua caminhada, a pensar na vida, enquanto permanece lento sob um sol forte, dia de calor exagerado. As ideias efervescentes transbordando. Ele se deixa levar pela vida. Ao ouvir no vazio incontrolável do tempo, palavras ásperas proferidas ao vento, advindas de um pensamento repetitivo, recidivo, incômodo; um ser distante em si mesmo. Já não sabe mais dizer se de fato a ligação aconteceu ou se ele continua apenas imaginando que tenha acontecido, como numa preparação para o inevitável. Clemente percebe que seu comportamento está sendo direcionado para uma realidade perversa, onde sequer existe uma sensação de controle.
Esse pensamento criou uma situação ideal para que seu corpo reaja, nesse instante, como um ser indômito, calafrios perpassam por sua espinha, percorrendo todo o corpo, como em uma descarga elétrica agonizante. Clemente acredita em sua plena consciência, certo de que o pensamento se transforma em pura energia, e mesmo se sentindo incapaz de controlar as próprias ideias, solenemente beirando a um estado quase de insanidade, ele sorri.
O celular toca novamente.
“Alô!”
“Sr. Clemente?”
“Sim!”, com o coração disparado ele apenas aguarda a confirmação da indigesta notícia.
“Senhor! A ligação caiu! O senhor entendeu o que eu havia dito? Sua esposa faleceu!”
“Sim! Entendi perfeitamente! Gostaria que fosse coisa da minha imaginação, mas não…!”
Nesse instante uma vida de abnegação ao casamento acaba por se encerrar; tanto quanto uma nova vida surge, emergindo instantânea e incerta, se faz presente sem apontar o rumo.
Por meio do celular, mesmo fazendo isso todos os dias, essa pessoa de voz desconhecida transmitiu a notícia indigesta sem conseguir esconder o desconforto, no fundo deseja jamais ter que dizer a alguém esse tipo de coisa, por isso mesmo, transpareceu apenas o óbvio, que tenta fazer com que tudo acabe o quanto antes, como a dizer que nada mais pode ser feito e o que havia para ser dito já foi proferido. Fato! Em sua natural e aparente sabedoria de homem simples, tanto quanto em sua impotência diante da morte, o homem ficou em silêncio sem dizer mais nada por todo o tempo que pode.
O desconhecido tentou assim, fazer com que tudo não passe de palavras genéricas, sem destino, ele mesmo tentando encontrar uma metáfora, mesmo que ruim, para justificar o próprio trabalho; “uma frágil ponte entre dois córregos que deságuam sem identidade, ideias perdidas, menos água, mais água, menos sujeira, mais lodo, mais barro; tanto faz!”. Inquieto, ele percebeu que sua voz exorcizou aos sussurros a necessidade de repetição frente à péssima qualidade do sinal da ligação. Em pensamento, lamentou por isso.
“Como se não bastasse, ainda tenho que repetir esse terrível acontecimento!”, o desconhecido rapaz em seu angustiante sussurro, ininteligível para Clemente, que ficou paralisado sem saber novamente se ouviu ou não mais alguma coisa.
“Um agente funerário entrará em contato com o senhor para resolver como serão os procedimentos.”
Sem ter nada a dizer, Clemente desligou o telefone quase estático.
Uma alegria sufocante comprometeu sua estabilidade emocional. São tantas as coisas envolvidas nessa notícia, são tantos os sentimentos misturados em seu coração, que ele permaneceu parado, sem saber ao certo se devia sorrir ou chorar. Para sua antiga estrada não há mais chão e nem companhia na jornada. Restou-lhe o fim de uma antiga vida que lhe parecia indestrutível, mas que agora, diante do nascimento de um novo tempo, repleto de novas possibilidades, como antes já lhe havia acontecido (de quando ainda era apenas um adolescente), a roda vida de onde tudo se mostra tão frágil quanto infalível; um novo rumo sem rumo.
“Não há nada a ser feito! Nada está comprovado diante do que é a morte! A antiga estrada acaba de se perder para sempre! Uma nova estrada está surgindo! Esse é o fato!”, pensou Clemente.
“Mesmo na minha morte, eu estou certo de que não reencontrarei Ângela, de qualquer jeito, não faz sentido pensar nisso, não faz sentido que possa acontecer de nenhuma maneira possível de ser imaginada! Nada permanece após a morte!”, esse pensamento, de certa forma, deixou-o aliviado. “Ângela não existe mais, senão em meu coração! Na minha memória. as coisas da antiga estrada agora são apenas vestígios! Minhas lembranças ficarão apenas comigo!”.
Continua…