Os filhos –
Clemente acordou assustado ao ouvir um barulho distante acontecendo durante a madrugada de domingo para segunda-feira, possivelmente o incomodo sonoro estava chegando da garagem. Uma noite de muito calor. Depois o ruído permaneceu num contínuo incômodo, insone, persistente. Qualquer coisa pode despertar uma pessoa de um sono já fragilizado, mas o barulho já estava fora do que se pode considerar como normal para o horário. No momento em que se levantou, sem ter a mínima noção da hora; ainda muito cansado, depois de um exaustivo final de semana repleto de atividades compromissos e um pouco de trabalho, dias repletos de acontecimentos sociais e muita bebida, lembrou-se que permanecia sem quase nenhuma informação a respeito do paradeiro dos filhos, sobre o que eles têm feito de suas vidas. Já faz algumas semanas que Ângela partiu desse partiu e Clemente nunca se sentira tão distante dos filhos, ao mesmo tempo nunca se sentiu tão preocupado com eles.
“Já está na hora de começar a acertar o rumo das coisas por aqui!”.
Apesar de estar muito sonolento, Clemente ainda consegue pensar que algo deve ser feito, enquanto se levanta com os olhos ainda semiabertos, apenas o suficiente para caminhar com lentidão – até encontrar a porta do banheiro que fica ao final do corredor -não muito distante do quarto, já que o banheiro da suíte está sendo reformado há alguns meses e ainda não apresenta as mínimas condições de uso. Clemente se arrasta enquanto tenta acordar sem correria, mas está indisposto. Tateando a porta do quarto com as mãos, seguindo rente à parede e arrastando os pés, um pouco claudicante e entorpecido, ainda assim consegue pensar nos filhos ao mesmo tempo em que se recorda de ter tropeçado em algo pelo chão num outro dia, numa situação parecida quase como se não soubesse mais diferenciar uma lembrança do que de fato está acontecendo no momento presente. Clemente tenta encontrar algum objeto como se isso fosse uma etapa a ser vencida. Acostumou-se a sempre tropeçar em alguma coisa nessas circunstâncias, por isso caminha como a tentar tirar do caminho qualquer objeto que esteja fora do seu lugar habitual, mesmo sem ter percebido se de fato algo está ou não pelo caminho, o mais seguro é caminhar arrastando os pés. Ele entra no banheiro lentamente pela porta estreita. Pensa que enfim não derrubou nada, mas ainda assim, totalmente desajeitado, acaba esbarrando em algo que está em cima da pia. Alguma coisa da qual não imagina o que é – apesar de ter um som parecido a um vidro grosso caindo pelo chão, até que tudo se define, então faz um enorme barulho quase espatifando e repicando pelos cantos. “Sempre é possível esbarrar em alguma coisa nessa casa, fico impressionado com isso! Coisas que nunca estão no seu devido lugar, isso é o comum, numa casa habitada por gente largada!”, como bem imaginou, tudo acontece de maneira repetitiva. Apesar da altura da queda o objeto não quebrou, depois teve um segundo objeto que também cai espalhafatoso. “Isso permanecerá pelo chão… assim mesmo! Assim será melhor, não sofrerá mais nenhuma queda!”. Clemente não quis ascender a luz, não se importa com a claridade, apenas não obteve coragem o suficiente, mas logo percebeu que fez assim para não terminar de despertar do próprio sono.
“Pretendo não acordar a mim mesmo! Isso sim! Já me basta!”.
Clemente urinou dentro do vaso sanitário por mera suposição, imaginando que nada haverá de obstruir o caminho do seu despojo até o fundo do vaso, acreditando que os riscos de acontecer alguma porcaria são mínimos diante da impossibilidade real de acordar. Em comparação ao risco de causar alguma sujeira, acredita ser boa as chances de não ter que despertar os olhos com o brilho da luz, olhos estes que ainda estão sedentos por mais algumas horas de sono profundo e muita escuridão. “Está tudo certo! Devo pensar?!”. Aparentemente não errou o alvo, também não quis verificar. Não faz o menor sentido. Lavou suas mãos de qualquer maneira, apenas para garantir um mínimo de higiene, mas sem exageros. Só está mesmo pensando em voltar para a cama e continuar dormindo.
“Higiene demais enfraquece o corpo! Mas também não é por isso que vou dormir com cheiro de urina nas mãos! …não preciso lembrar de que sou um médico bem conceituado, e que não ficaria bem se eu começasse a bancar o porco açougueiro, ainda mais depois de tantos anos de profissão!”.
Ao voltar para a cama – ainda tentando se ajeitar para voltar a dormir – Clemente ouve novamente um barulho na garagem. Parece que algo caiu no chão seguido de outro barulho como a aceleração exagerada de um carro. “Aparentemente com alguém desorientado tentando estacionar… Deve ser um dos meus filhos entrando aos supetões! Deve ser o Fausto!”. Em seguida, Clemente ouve a porta da sala se abrir. O máximo que ouviu depois disso foi o barulho de um corpo se jogando no sofá novinho comprado por Ângelo algumas semanas antes do seu terrível desfecho. Na verdade Ângela havia comprado o sofá alguns dias antes da internação, já muito próximo ao seu falecimento. Ela mesma não teve tempo de ver como o móvel combinou bem na sala. Ela havia despendido uma pequena fortuna pelo sofá, um mimo do qual Clemente fez questão de lhe proporcionar sem nenhuma objeção. Clemente pensa com toda certeza desse mundo que ela não iria permitir que alguém dormisse no sofá novo. “Mas, talvez… é… bem! Provavelmente não teria coragem de expulsar nenhum dos filhos do sofá. Superprotetora como sempre foi, acredito que ainda colocaria um lençol para o sujeito se cobrir!”.
Clemente voltou a dormir. Depois, sem saber quanto tempo se passou, apenas tenta ser paciente ao ouvir ainda de madrugada, mais ruídos estranhos, possivelmente de algum dos filhos. Clemente ficou sonhando que certamente alguém estará muito bêbado e sujo vomitando pela sala. “Isso se for mesmo o fausto… Vou deixá-lo em paz! Afinal não sei dizer por quantos dias ele não aparece em casa!”. Sonolento, Clemente voltou a dormir diante do incrível silêncio que se seguiu.
Horas depois, com o sol avisando a todos da chegada de mais um dia, mesmo aos mais desavisados. A claridade foi invadindo a casa silenciosamente por pequenas frestas brilhantes, pelas janelas dos quartos e da sala, com a luz portentosa de astro-rei que, apesar da sua força habitual, apesar de toda a sua força vital e diária, não muito raro passa despercebido por muitas pessoas. Clemente fica enaltecido com tanta energia, levanta-se da cama com uma incrível disposição para um mundo de coisas e possibilidades que podem surgir. Mesmo estando um pouco sonolento, consegue concluir que, “acho que conheço a vida de maneira muito superficial”, e por isso mesmo se sente feliz, com a vida podendo lhe proporcionar muitas surpresas. Tenta não ficar imaginando um mundo dividido entre coisas boas e ruins, pois na vida poderá sempre existir ou acontecer tudo ao mesmo tempo; apenas um fluxo de coisas em um vai-e-vem contínuo, sem ideia de valor. Certeza mesmo, com uma única exceção, aconteceu no momento em que pensou no trabalho. Não exatamente sobre a ideia simples de estar relutante contra qualquer tipo de trabalho, mas uma indisposição ao velho trabalho, ao ultrapassado e massificado assunto que se tornou a medicina em sua vida.
“Isso me faz pensar que qualquer trabalho novo seria melhor do que o normal para este momento. Melhor do que qualquer mesmice do mundo da medicina! Isso tudo, já está na hora de tomar outro rumo! Mas qual? Como? Quando?”
Clemente saiu de sua casa sem ter notícias objetivas de nenhum dos filhos. Sequer olhou nos quartos de cada um para saber quem está ou não em casa. Mas deixou um recado geral na sala solicitando a presença de todos para o jantar de hoje à noite; pois está com a intenção única de ter uma conversa sobre como ficará o papel de cada um deles diante das coisas da casa depois de tudo. Após a morte de Ângela não houve nenhum tipo de conversa e ele quer definir como ficará a vida de cada um dos filhos o quanto antes.
Mesmo após algumas horas depois da saída de Clemente a casa continuou em silêncio. Fausto permaneceu dormindo no sofá (Clemente esqueceu de dar uma olhada), Fabrício havia saído cedo para as aulas do curso de Direito enquanto que a Fabiana, que dormiu fora de casa, ainda não havia retornado.
Continua…