O trabalho

“O trabalho mumifica o homem!”, Clemente pensou por várias vezes e por vários dias seguidos, até que resolveu escrever essa frase num pedaço de papel de receituário, por mais que tratasse a frase com desleixo, por mais que se esforçasse por não mais se lembrar, retornava com facilidade em sua mente, como uma maneira estranha e insistente para deixar a frase escrita em seu caderno de reflexões mesmo que isso não fosse mais necessário. Fez isso enquanto desconcentrado permanece a aguardar, e nem mesmo sabe mais o que está aguardando. Está chateado com o que se tornou a profissão de médico, “um quase açougueiro com diploma de doutor… ou um quase doutor?!”. Sentado em sua confortável cadeira, protegido por sua escrivaninha branca destituída de sentimentos, impassível como testemunha diante das coisas do mundo. Paredes brancas, móveis brancos, roupas brancas; tudo à volta repleto de sentimentos brancos. “Existir, dói mais do que o próprio fazer, pensar é só uma questão do não morrer agora, respirar é escrever coisas sem sentido aparente por sobre um grito no infinito da matéria! Um surto vale mais que…”. ele mesmo não acredita que está pensando essas coisas tão sem sentido.

“O homem criou a máquina, e também criou outras máquinas para poder consertar máquinas, mas não criou nada para consertar o criador da máquina! Portanto, o homem e a máquina permanecem sem sentido, aliás, funcionando… mesmo sem ter conserto! A máquina distante do criador… O dia em que os homens descobrirem o quão maravilhoso é o servir, tudo mudará! Mas por enquanto, eu mesmo sinto dificuldades de colocar em prática as minhas ideias! O que mais poderei dizer então…?”

Clemente sorriu do próprio desespero, e continuou em silêncio, protegido pela espera. Até que uma pessoa entra pela sala com cuidado excessivo perguntando se o Doutor Clemente havia chamado por seu nome. “E qual o seu nome?”, perguntou Clemente ao perceber que não se recorda de ter chamado nome algum.

“São todos iguais mesmo…! Infelizmente!”.

“Todos os nomes são iguais?! Servem para… a princípio, apenas para distinguir as pessoas, mas acaba mesmo revelando outras coisas…. coisas do impossível e imponderado destratar dos homens pelos homens… serve para revelar de maneira sutil as desigualdades submersas! Ilusões das aparências! E eu… eu poderia a aprender a escrever poesias… mas não levo muito jeito!”

“Todos são tratados com indiferença… mesmo sendo iguais! Ou… com teorias de igualdade para esconder as diferenças… bem! Uma grande mentira! Vivemos apenas das aparências”. Anotou mais essa frase agora aos risos, sentindo-se em uma profusão inócua de criatividade insípida e inútil.

“O que fazer com o pensamento desacompanhado de uma ação? Nada!”

Clemente percebeu que ficara em silêncio por um tempo indefinido, virou seu bloco de anotações para baixo e pediu para que a paciente entrar e se sentar. Ao terminar a consulta, ele tentou lembrar-se em vão o nome da paciente e percebeu de novo que o processo foi reiniciado; depois, outra paciente adentrará novamente a sala perguntando a mesma coisa, ele não se recordará de ter chamado nenhuma delas e que continuará apenas e de maneira egoísta pensando em ir embora para algum lugar distante, e de preferência que não tenha nome. Clemente não está mais ouvindo suas próprias palavras; seus pensamentos não lhe dizem mais nada a não ser o fato de que não deve olhar sua vida apenas de fora para dentro. Precisa de algo mais, mas até mesmo para esse algo mais, ele está se sentindo sem tempo e sem disposição, dificilmente tomará uma atitude contundente.

Diante desse entra e sai de pacientes que parecem ser todas iguais, mas que não lhe diz nada cujo significado ele compreenda, Clemente acabou por se lembrar dos amigos de profissão que irá encontrar ao final da tarde. Pensou em João e o quanto esse amigo se diz angustiado e sem vida no trabalho, e que agora Clemente também está se sentindo assim, o que antes lhe parecia um absurdo.

“Talvez eu esteja me sentindo assim por mais tempo do que eu mesmo tenha conseguido perceber?!”

Lembrou-se também do seu ex-vizinho e amigo de infância, Pedro, que também se tornara médico na mesma época. E que agora todos se encontram levemente perdidos diante de um mesmo problema: a pressão por resultado comercial influenciando na qualidade do trabalho médico.

“Talvez uma geração inteira de profissionais cansados e insatisfeitos?! E sem ter o que fazer! Vai saber?”.

“Eu e meus amigos, todos trabalhando na mesma profissão, em consultórios e hospitais distintos; três pessoas trabalhando em áreas diferentes da medicina, e ainda assim, compartilhando praticamente das mesmas opiniões, das mesmas angústias. Já ouvi a reclamação deles e de vários outros, eu não havia entendido muito bem o que era isso há até pouco tempo! Até que eu mesmo começasse a me sentir assim. Os motivos de origem podem até ser diferentes para perceber tais coisas, mas quanto a essência, a essência de tudo isso é idêntica! Sim…!”

Clemente continuou pensando em Pedro. Lembrou-se de quando ele lhe confessou – numa conversa que aconteceu recentemente – em que o amigo lhe disse que depois de adulto, e já formado em medicina, tão rapidamente já não sabia mais o que fazer da própria vida.

Continua…

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