A viagem –
Clemente está decidido a se ausentar de tudo e de todos dentro do que for possível, e estranhamente até de si mesmo – se for o caso. Um sentimento secreto de um falso anarquismo o dominou sem que ele mesmo tenha percebido, na verdade já faz algum tempo que esse sentimento se mantinha escondido, fundindo os motivos falsos e verdadeiros dentro de um só objeto, um balaio de achados e perdidos, um íntimo e confortável desencontro, um novo pensamento inafiançável se instalando a cada segundo, teimoso, rígido, fixo. Por não desejar nada a si mesmo que possa colocá-lo ainda mais em contradição, a partir deste instante de ‘conscientização’, a cada segundo tremulo até chegar ao ponto em que acabou por não desejar nada mais de coisa alguma, principalmente quanto a não gerar expectativas de coisas materiais, principalmente para ele mesmo tanto quanto para ninguém próximo. Ao menos por enquanto, a presença contraditória e difusa desse não-desejo pleno se estabelecendo com força no pensamento, e com isso certamente permanece a acreditar que não sentirá nenhum incômodo, nem mesmo a longo prazo, a existência já é por si só a dicotomia do pleno incômodo, às vezes uma singela alegria levemente plena. Em tese as coisas materiais podem ocupar com mais facilidade os espaços de maneira inútil, já com relação aos pensamentos, isso depende muito, pode acontecer sem um sentido lógico e o vazio pode se revelar possuidor de grande alegria e satisfação.
Ao pensar para onde poderia ser a viagem e como pensa em tratar do assunto, Clemente sucumbiu ao estranhamento. Chegou a pensar em sair pela Europa ou pela Ásia sem destino certo e riu de si mesmo ao pensar “como se eu fosse um adolescente!”, mas logo refutou a ideia, não lhe pareceu muito prudente um homem em sua idade, sem saber se possui um mínimo de disposição condizente com a idade, sair pelo mundo sem destino não lhe pareceu ser uma boa ideia. Ele concluiu com rapidez e sem nenhuma dificuldade, que o ideal seria mesmo ir para um único país, distante, de língua desconhecida e de cultura o mais dissonante possível. Porém, ao imaginar alguns dos detalhes dessa possibilidade, desde a burocracia para tirar toda a documentação necessária, até os possíveis apuros que poderia ser submetido desnecessariamente, colocando-se em risco sem nenhuma necessidade verdadeira, decidiu com certa prudência que – para sua primeira desventura longe do Brasil – o melhor mesmo é não inventar muito. Assim, decidiu de uma vez por todas por passar um tempo mínimo em um país que seja o menos imprevisível possível quanto às questões culturais, e esse país será mesmo os Estados Unidos da América. “Talvez por dois anos ou mais… quem sabe?”, e depois, caso as inquietações em continuar fora do Brasil permaneçam, ele pensa em planejar outra viagem com propostas e desafios mais robustos, bem diferente e ainda mais desafiador do que simplesmente ir paro os Estados Unidos.
Determinado a não continuar com a mesma vida de sempre, repleta de compromissos e responsabilidades inúteis, Clemente pretende contribuir para que sua viagem – e principalmente sua permanência nos Estados Unidos – contenha uma margem atrativa de imprevisibilidade, quem sabe com certo sabor juvenil de aventura e muito desembaraço com relação as mulheres. Tudo isso não está ligado ao fato de querer se ausentar do Brasil, nem mesmo sabe se deseja se ausentar de si mesmo por algum tempo, quanto mais de uma terra que considera tão agraciada, mas está ciente de que é possível experimentar novas realidades sem que se sinta como um fugitivo. “Apenas uma feliz possibilidade de desencontro e mais nada!” Com a certeza de se garantir ao máximo com o descompromisso e o mínimo com a rotina, principalmente do trabalho. Nesse momento apenas está pensando em preparar um pacote de viagem em uma agência idônea para uma estada inicial de apenas uma semana, não mais, o restante do tempo ficará com o ‘destino’.
Continua…