Vida e Obra –
Não é nada fácil traçar parâmetros confiáveis em cima de fatos imprecisos e relatos desconexos, principalmente quando o assunto não está bem documentado. Em termos de possuir ou não boas referências, existe nisso uma certa importância a fim de que saibamos com alguma capacidade de acerto que, ao tentar traçar limites, não estejamos fantasiando as coisas. Como saber quais foram os acontecimentos que influenciaram e serviram de mote nas vidas dos romancistas que de fato podem servir de material comparativo entre o que foi escrito em suas histórias e o que aconteceu de verdadeiro em suas vidas? Normalmente o que acontece é um amontoado de achismos travestidos de intelectualidade, um tipo de cientificismo maquiado de “autoridade no assunto”, ou quem sabe até mesmo seja algo que acontece com um certo exercício de sarcasmo ególatra do “historiador ou crítico” em ser ouvido até quando o assunto é absurdo e irreal. Confesso que não costumo dar muita atenção a esses tipos de elocubrações, informações da história de vida dos autores não me deixam entusiasmado, pois remetem a desdobramentos cujas conclusões mais se parecem com manifestações da vontade de quem faz os relatos. Nem sempre um fato verídico influencia os acontecimentos e os conteúdos das histórias de ficção, tanto quanto também é possível reconhecer que não é correto renegar que tais acontecimentos e correlações nunca acontecem, assim, resta depositar um mínimo de bom senso a fim de não incorrer em excessos, achismos ou até opiniões repletas de indiferenças. Na dúvida, quanto a esse tema, prefiro ficar um pouco mais distante do que a maioria das pessoas que cedem a tentação em imaginar falsas relações do que de fato aceitar a ideia de que pode sim, existir acontecimentos reais parecidos com os acontecimentos ficcionais, porém, muitas vezes totalmente desconectados dos trabalhos dos autores.
O fato incontestável é que a vida de Dostoiévski foi bastante movimentada e repleta de acontecimentos relevantemente traumáticos e perigosos quanto a preservação da vida e da própria saúde mental e espiritual. Acredito que uma vida plena de acontecimentos pode sim ajudar um escritor a ter vivência para escrever sobre diversos assuntos da vida cotidiana, esse deve ser apenas mais um dos temperos que podem ajudar a compor um ambiente favorável quanto a criatividade e ter conteúdo mais robusto na escrita.
Dostoiévski propõe em seus textos grandes reflexões quanto a alma humana, raramente ele toma uma decisão definitiva frente aos temas abordados como na dicotomia entre fé e política, religião e estado, certo e errado, sua obra tem menos de um sistema coerente de crenças e tem mais um desejo urgente de crer. Os elementos que poderiam dificultar na escrita frente a um autor menos talentoso, nas mãos de Dostoiévski a escrita flui com os argumentos filosóficos em seus romances acompanhados de elementos alegóricos particularizados.
Muitos consideram o escritor russo como referência aos primórdios do ‘existencialismo’. O existencialismo é uma abordagem filosófica que se caracteriza por inclusão da realidade concreta do indivíduo como parte central, que se concentra no que é pessoal.
Estilo e gênero – Romancista russo cujos poderosos dramas a respeito da confusão moral marcam o início da moderna ficção com aspectos psicológicos marcantes. Se uma vida movimentada fornece material para uma produção literária de melhor qualidade, então as circunstâncias providenciaram para que Dostoiévski obtivesse toda a inspiração de que precisava. Na década de 1840 ele se envolveu com movimentos políticos, otimista da intelligentsia russa, entrou para uma sociedade chamada Círculo Petrashevsky. Ao retornar a São Petersburgo em 1859, encarava com ambiguidade o movimento cultural ao qual pertencera e direcionou a atenção com crescente fascínio para a ortodoxia russa e o tradicionalismo.
Crime e castigo – Dostoiévski ajudou a criar o gênero de ficção criminal, de maneira narrativa e arrebatadora, ao mesmo tempo lenta, acumulando tensão sem ceder ao peso de sua própria ambivalência, realizou esse feito ao manter tudo em constante movimento, mesmo na construção das frases. Capaz de atrair leitores por um senso de inevitabilidade. Personagens totalmente responsáveis por próprio sofrimento e que estão normalmente conscientes da culpa, esse conhecimento apenas aperta mais forte o nó. Aparentemente o perfil de personagem amoral parecia fascinar Dostoiévski, o que hoje é mais conhecido como sociopata.
Os Demônios – Dostoiéviski cria talvez seu personagem mais amoral: Stavrogin, o líder de uma organização radical não muito diferente do Círculo Petrashevsky. A diferença é que os radicais no romance são menos inocentes. A obra é ambientada na década de 1860, depois que a intelligentsia já descartara muito dos ideais utópicos que caracterizam o clima da juventude de Dostoiévski, dando lugar a um materialismo prático e niilista. Se Dostoiévski pôde ver o futuro, foi por causa da sua fixação nos dilemas que se desenrolavam diante de seus olhos, em um presente inevitável e incerto.
Composto por duas partes o romance Memórias do subterrâneo, é uma reação ao “egoísmo racional” de Chemychevsky, contemporâneo de Dostoiévski, que parte da premissa de que o ser humano sempre reage com base na percepção de seus próprios interesses e que, na realidade, escolhe conscientemente fazer o oposto daquilo que sabe ser bom para ele. A primeira parte é uma declaração desses princípios. A segunda parte é uma história contada por um narrador tão revoltante que muitos leitores consideram que, ironicamente, parece enfraquecer o primeiro segmento. O ponto, porém, é que, seja o que for que possamos pensar, o homem do subterrâneo, gostando ou não, escolheu ser a pessoa que é. Notas do Subterrâneo foi escrito em um momento extremamente difícil para o autor, uma vez que a saúde de sua esposa, Maria Dmitrievna, por conta de sua tuberculose, havia piorado muito, vindo a falecer em 12 de abril de 1864. Se não bastasse a morte da esposa, Dostoiévski perdeu seu irmão Milkhail logo em seguida, no dia 9 de julho de 1864. Nesse trabalho Dostoiévski retratou a necessidade humana de liberdade, insuperável, podendo fazer qualquer coisa para manter essa liberdade intacta, inclusive o masoquismo.
O Idiota relata a história do príncipe Liev Nikoláievitch Michkin, um jovem russo tão honesto e ingênuo que – à primeira vista – é tomado por idiota. Sua franqueza atrai as pessoas, e os amigos confiam nele inteiramente – embora não saibam ao certo se a percepção única e penetrante do príncipe é fruto de sabedoria profunda ou da loucura. Enquanto estava às voltas com o manuscrito da obra, tentando clarear a imagem do príncipe idiota que desejava transformar em um homem convincente e perfeitamente bom, Dostoiévski anotou para seu próprio uso: “O príncipe – Cristo”. Em basileia, ficou tão impressionado com um quadro de Hans Holbein que retratava Jesus que o contemplou, imóvel, por vinte minutos. Sua esposa se lembrava de que “a figura de Jesus retirada da cruz, com o corpo já dando sinais de decomposição, o assombrou como em um horrendo pesadelo. Na época em que escrevia o livro estava obcecado com os Evangelhos, a obra de Ernest Renan – cujo best-seller Vida de Jesus, em que retratava Cristo como um homem mortal e não como o filho de Deus, fora publicado na França em 1863 – e Otelo, de Shakespeare, com seus temas de paixão e ciúme. O príncipe havia se tratado na Suíça com um médico muito renomado por seus trabalhos com idiotia e insanidade. Como Dostoiévski, o príncipe é epilético, e o romance inclui uma vívida descrição do início de uma crise convulsiva. A história pormenorizada que o príncipe conta a respeito de um condenado à morte que foi salvo no último minuto também se baseia na vida do escritor.
“Prefiro Cristo à verdade” escreveu Dostoiévski que valorizava muito a fé em Cristo.
O próprio Dostoiévski chamou seu estilo de realismo fantástico (não devemos confundir com o movimento literário sul-americano costumeiramente nomeado pelos alemães), indicando que suas obras dramatizam aspectos da realidade, a fim de, no presente, retratar o passado e as possibilidades futuras. É o caso do Homem do Subsolo: fantástico porque improvável do exato modo como descrito, real possível, sobretudo real fantástico porque consequência do processo histórico de ocidentalização da Rússia e projeção no futuro, na medida em que profetiza um tipo existencial. Estas explicações de Dostoiévski são fornecidas, sobretudo, quando de sua análise da pintura Rebocadores do Volga.
“Quando se tornaram criminosos, inventaram a justiça e promulgaram para si mesmos códigos a fim de mantê-la, e para a execução dos códigos, usavam a guilhotina.”
Na visão do crítico literário O.M. Carpeaux: ” Se não é o maior, Dostoiévski decerto é o mais poderoso escritor do século XIX ou do século XX, pois a sua obra constitui o marco entre dois séculos da literatura. Literariamente, tudo o que é pré-dostoievskiano é pré-histórico; ninguém escapa à sua influência subjugadora, nem sequer os mais contrários”.