O Retorno

            O primeiro dia, uma música crua, seca, como uma manequim sem roupa, e de repente as cores ressurgindo na retina, o gosto de um beijo desconhecido, o som da cidade, antes tão distante, o cheiro incrustado, antes tão ausente, mas agora tudo tão próximo, tudo reunido num só ponto. Clemente está diante do espelho, não reconhece os próprios traços, não mais se vê como um homem que assiste ao filme da própria vida. Em silêncio, grita quase feliz, um choro em forma de riso preso, enjaulado. Tudo tão diferente de antes, ao mesmo tempo tudo tão igual. O cheiro da cidade, um sabor de primavera de aromas variados, mas principalmente repleta muitas cores, muitas cores. Surpreendeu-se com a gama de cores dentro desse novo sonho, não há mais o tom de sépia. O filme agora ficou distante, como uma lembrança, sensação deslocada para longe, o cinza voltou a ser apenas como um filme em preto e branco, uma fotografia de um tempo distante.

            O Brasil lhe pareceu muito mais colorido e tangível, aconchegante, Clemente agora está em casa diante dos velhos costumes como quem olha para uma cadeira antiga, uma velha cômoda, uma escrivaninha de museu. As ideias são muitas, as perguntas são muitas, tudo está sendo misturado dentro de um túnel que gira sem um motivo lógico. Está sentindo o mundo rodopiar no seu próprio tempo, as sombras a lhe confundir as rugas, a visão a lhe roubar a sensibilidade da percepção já tão imprecisa. Nada importa, tudo importa. Tudo distante, tudo ao alcance. Basta tentar.

            Por fim, após tomar um simples banho, Clemente decide que irá se encontrar com seu irmão o quanto antes, na expectativa de recobrar a disposição frente ao que imagina que pode estar por vir: o desconhecido às vezes chamado de destino, às vezes chamado de imprevisível.

            Clemente percebe e pensa na saudade que está sentindo dos filhos, do aconchego de casa, do irmão, do trabalho e de todas as coisas que sempre compuseram sua vida. Relaxamento e tensão, sempre uma ilusão de pensamentos, indo e voltando. A antiga rotina não lhe parece mais tão pesada, ao menos agora. Está certo de que a vida não poderia ter sido melhor nem pior, de que nada poderia ter acontecido de outro jeito, de que agora, mesmo que os problemas e as divergências não estejam incomodando mais, não como antes. Talvez não esteja nada superado, mas os ajustes e refinamentos poderão ser feitos dentro do possível, no seu próprio tempo. Não vale a pena se preocupar. As coisas acontecerão paulatinamente conforme cada passo dado, as invenções inúteis e sem sentido dos homens não mais terão serventia.

            Quanto ao horário, Clemente resolveu que o melhor a fazer é ir direto ao escritório do irmão, mas que deixará isso para o final da tarde a fim de não atrapalhar o bom andamento do escritório, pois, lembrou-se que dificilmente o irmão não permanece trabalhando até as oito, nove horas da noite.

Já está próximo ao horário do almoço, Clemente sai do hotel para dar uma volta pelas ruas do centro da cidade, curioso para saber como as coisas estão de fato, e só depois irá comer alguma coisa. Aos perceber as ruas floridas, e se deu conta de que não está mais dentro do sonho que parece sonho, a sensação de realidade mudou de vez, e com isso está se percebendo vivo de novo, como antes, há muitos anos, numa inversão das realidades. Sentiu-se tão bem como nas poucas vezes em que não estava se sentindo responsável por nada, de quando conheceu Ângela, de quando viajou para os Estados Unidos, dos momentos em que não possuía nenhuma expectativa quanto à vida. Como em outros momentos em que não pensou nos motivos de estar se sentindo bem, apenas tenta desfrutar da ausência, quase que improvável, da razão.

Ao voltar para o hotel, deitou-se na cama sem a mínima pretensão de ter o que fazer ou o que pensar, e por isso mesmo acabou caindo num sono profundo.

Assim que acordou, Clemente pegou o aparelho telefônico ao lado da cama sem muito jeito e ligou para a recepção do hotel, a fim de solicitar um táxi para as cinco horas da tarde. Aprontou-se sem pressa, deixou suas coisas no hotel, sem compromisso com a correria do tempo, ainda sem saber muito bem o que fazer.

“Somente um ‘animal’ preso a matéria consegue olhar sem reter, sem ver, ouvir sem perceber, dormir acordado sem saber que está apenas de corpo presente, acordar tranquilo diante de inúmeros absurdos… repleto de automatismos da ilusão! Nunca pensei que esse retorno seria tão útil! Sinto-me ótimo!”.

“Muitas cidades conseguem, com certa facilidade, transparecer uma falsa familiaridade, pois não é o que aparentemente aconchega, na verdade o que atrai as pessoas é o desconhecido, e os acontecimentos e ruídos distantes que no fundo agridem, mesmo estando distantes, talvez… o barulho e a poluição sendo tão comuns em tantas cidades que às vezes fazem com que as pessoas fiquem com a sensação de que já estiveram num determinado lugar. Uma certa insanidade, sempre estranha, considerando como familiar o desconhecido por um viés improvável… o barulho dos carros, os ônibus, os caminhões poluindo as ruas, os pedestres se atropelando nas calçadas, pessoas atravessando por entre os carros de maneira abrupta e arriscada, sempre de maneira desnecessária… repulsa virulenta da natureza humana, a presa, a presa, a presa. Ainda mais com as pessoas sempre muito preocupadas consigo mesmas, como se não pertencessem ao mundo criado senão por nós mesmos, mas que resulta em uma impessoalidade entorpecente”.

Clemente se assusta ao se deparar com tamanha dissonância, como se o tempo do descanso fosse algo inatingível, a vida incoerente, “como se o homem, para poder viver no paraíso, tivesse que vender a alma ao diabo!”. Clemente continua pensando e rindo de si mesma, depois resolve que deve fazer anotações dessas ideias ‘malucas’. Vida e morte estão contidas numa só nota e, assim, a permanência na Terra permanece condicionada a um tempo suspenso, especialmente nas grandes cidades. Mas excetuando-se os espaços turísticos onde tudo está contido na fantasia de férias, sem mesmo ter algo de substancial ou necessário à manutenção da vida. Clemente jamais havia percebido com tal ‘clareza’ como as pessoas deixam de viver em nome da falsa ameaça à sobrevivência, e conclui que até mesmo a mais terrível das existências de uma vida sofrida dentro de uma floresta fechada, repleta de perigos naturais, ainda lhe parece menos ofensiva do que a vida entre os homens, diante do som e da fúria inútil de corações pulsantes por carne, a supremacia humana da sobrevivência a qualquer custo. “Vislumbre das ilusões, a visão como a própria vertigem, a morte como mantenedora da vida, a vida como simples acontecimento!”.

            “Caramba! Dessa vez eu acho que exagerei nessas anotações malucas!”

Continua…

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